" A minha família estragou a minha vida."
Diante de uma frase dessa intensidade catastrófica, me preparei para algum trauma dos graves. Mas depois de cinquenta minutos de sessão, o que pude entender do relato dessa moça, era que a família tinha um comportamento neurótico, conflituoso, controlador, "chato", "problemático" e outros identificadores repetitivos. Mas a paciente insistia na frase " a minha família estragou a minha vida".
Essa frase seria mais preocupante se fosse dita por uma senhora de 65 anos, mas era uma jovem de 17 anos, ansiosa, irritada, mentalmente perturbada, falando sem parar e descontente com tudo e com todos. Depois de um medicamento antidepressivo e um estabilizador de humor, curamos o "estrago" que a família tinha causado e ela conseguiu viver a sua vida relativamente bem. Nesse caso, o final foi feliz.
No decorrer dos anos descobri variantes dessa frase em outras(os) pacientes: "Minha família é isso, é aquilo"... "Você precisa conhecer a minha mãe, doutor.".. " Meu pai é um carrasco...", ..."Se eu tivesse uma outra infância, seria diferente..." Como poderia não ser louco, olha minha história de vida..." Eu não tenho problemas, eu vim no lugar da minha mãe."..
Há situações em que realmente os pais estragaram a vida dos filhos. Apesar de negarmos as repercussões mentais produzidas por famílias doentes, elas existem, são frequentes , duradouras no tempo e difíceis de tratar. A "atitude polyanna" de negar esses traumas é contraproducente. O melhor é admitirmos que a família legou uma herança para essa pessoa, a carga da doença mental, os descuidos parentais que fragilizaram a estrutura de personalidade da criança em formação e fomentaram problemas na vida adulta. Encarar a verdade é o primeiro passo.Sim, pais destróem a vida de filhos. E filhos destróem a vida de pais.
Na avaliação psiquiátrica precisamos diferenciar casos como o da moça de 17 anos e casos reais em que os traumas infantis, os maus-tratos, a negligência, a doença mental dos pais provocaram sequelas indeléveis no cérebro dos filhos. Se for um caso real, a expectativa de recuperação é bem menor. Se houve a produção de sequelas neurológicas por agressão, privação alimentar, privação emocional, vamos ter que aceitar a inevitável irreversibilidade do quadro, com um discreta melhora parcial, talvez.
Existem casos em que os pais são inocentes. Eles fizeram o seu melhor, mas os filhos insistem em culpá-los de todas as mazelas da vida. Mesmo investigando o histórico desenvolvimental , não encontramos evidências contundentes( desculpa a linguagem jurídica, andei acompanhando o "caso Nardoni") para caracterizar o alegado trauma. Neste caso, o neurótico é o (a) filho(a). Inocentamos os pais e tratamos o(a) filho(a).
Concluí que pais são culpados ao receber no consultório o(a) paciente acompanhado pelos pais. Depois de cinquenta minutos de sessão, dei o meu veredicto. __ Culpados! Na sala, a pessoa mais sana era o(a) paciente. Em silêncio me perguntava: __ Como não enlouquecer com uma família assim? Eu estou com a minha cabeça doendo e foram só cinquenta minutos. Até que o (a) paciente não está tão mal.
A diferenciação de histórias reais e histórias irreais é trabalho de investigação psiquiátrica e psicológica. Através da montagem de um quebra-cabeças vamos fazendo a releitura dos fatos e interpretações, para chegarmos à versão mais aproximada da realidade.
O que queremos com essa diferenciação é planejar o tratamento. Casos irreais respondem rapidamente a medicamentos controladores do humor e ansiedade, ou mesmo a uma boa terapia para salvar essa pessoa da "adolescência eterna", sempre reclamando, queixando-se, "porque outros, os outros, os outros, os outros". Crescer, amadurecer é descobrir que os outros não têm tanto poder assim nesta fase da vida. E ficar culpando o passado é recusar-se a assumir a própria vida e as responsabilidades. Essa culpabilização dos pais, depois passa para a esposa ou marido, transita para o chefe, mas a única pessoa presente em todas as cenas do crime é a própria pessoa ,que insiste em projetar nos outros os seus demônios psicológicos. Não existe determinismo psicológico. Isto é, não existe fatalismo psicológico. Sempre é possível melhorar algum aspecto do psiquismo por ação do tratamento.
Casos reais vão seguir com as sequelas indefinidamente. Conviver com as limitações impostas pela história de vida é um exercício de superação mais produtivo, do que tentar medidas de transformação psicológica radical, seja através de mantras " Pense positivo", " A vida é tão bela, o céu é azul e o sol brilha", seja através da autovitimização exagerada. O ser humano é multidimensional, sofre influências genéticas, familiares, sociais e interpessoais. O mecanismo de mudança é experiencial. Viver o presente , em contato com experiências que transformem a visão negativa do passado é necessário e terapêutico. Quanto mais uma pessoa colhe experiências construtivas, mais ela remodela a sua história de vida, mudando o final. Neste caso, o final pode ser feliz outra vez.