Lembro-me da época em que era residente em Psiquiatria. Com a devida autorização do chefe do departamento do curso de pós-graduação, podíamos trabalhar um dia por semana e complementar a renda. Hoje eles proibiram até esse "bico", que para nós era uma regalia. Portanto, o residente hoje em dia precisa dedicar-se totalmente ao hospital, sem possibilidade de ganhar uns trocados extras. Médico residente é "escravo do hospital", mão de obra mesmo, "tocador de serviço." E ganha uma mixaria. Pior do que médico residente, somente odontólogo fazendo pós-graduação, porque além de não ganhar um salário , ainda precisa pagar pela especialização.
Depois, no terceiro ano de residência, ganhamos mais um dia para trabalhar fora. Ufa, mais um pouquinho de renda extra. E assim íamos vivendo a vida, sobrevivendo. Já éramos médicos, mas vivíamos como estudantes, com o dinheiro apertado, contadinho até o fim do mês. O dinheiro nunca chegava até o fim do mês. Então, a vida do residente é trabalhar como escravo e ganhar como operário. Três longos anos! E com aquele dinheiro pagávamos o apartamento, a psicoterapia semanal, o consórcio do carro, o cinema. Não entendo como era matematicamente possível esse malabarismo. Um milagre.
Hoje atendo pacientes que sofrem pressões financeiras que comprometem a sua saúde mental. Logo falarei sobre isso.
Depois da residência, enfim especialistas, conseguimos uma vaga no quartel. Oba! Ficamos ricos! A renda do quartel ajuda muito, nada paga melhor do que o quartel nesta fase de vida. Imagine multiplicar a sua renda da residência por cinco. Melhora bastante. E os "soldos extras" para a aquisição de uniforme, então. Dois salários inteiros para um uniforme. Na época, devo ter comprado umas meias e gasto o restante da grana com outras coisas. Sim, agora me lembro. Fui jantar fora com a namorada. E paguei a conta sozinho.Era um orgulho nacional.
A vida de médico não é nada fácil. Atender pacientes com doenças mentais graves e ainda administrar a sua própria sanidade, num período financeiramente instável, desestabiliza muitos. Então entrava a terapia em ação, o "tratamento pessoal" para ajudar o candidato a suportar as pressões psicológicas, físicas e financeiras. Ou melhor dizendo, psicológicas e físicas, porque a terapia é paga, o que aumenta a pressão financeira.
Antes de "enriquecer" como tenente-médico, trabalhei em duas prefeituras perto da minha cidade, Santa Maria-RS. Numa das prefeituras fiquei 5 anos. Na outra fiquei 6 meses e fui demitido! Para um médico ser demitido, ele tem que cometer uma falta grave, imagino. Eu fui demitido porque decidi fazer feriadão no período do Natal e do Ano Novo,como fazem as repartições públicas hoje em dia, o famoso recesso de Natal. Como esqueci de pedir permissão ao prefeito, ele me demitiu sumariamente. Se na residência médica somos escravos, naquela prefeitura( e em muitas outras) somos promovidos a subescravos. Nunca esqueci da cifra que eu ganhava por trabalhar uma vez por semana o dia inteiro. Essa cifra ficou gravada na minha memória. Depois de todos os descontos, sobravam R$ 647 reais!!! Menos da metade do que ganhava um residente. Voltando para Santa Maria no meu Fiestinha, abalado pela demissão, entristecido pela perda da renda, só pensava como compensar essa perda em termos financeiros. Precisava arrumar outro trabalho o mais rápido possível.
Cheguei no apartamento e fui descansar um pouco. Estava quase cochilando, quando recebo um telefonema de uma colega médica da cidade vizinha. Estranho! Ela nunca me ligou antes. Atendi. Ela queria saber se eu " não estaria interessado" em assumir como médico perito do INSS! No mesmo dia! Quando uma porta se fecha, outra porta se abre. No mesmo dia! Incrível! Sim, eu estava interessado!!!!! Este fenômeno que alguns denominam coincidência, eu chamo de sincronicidade. Mais ainda há mais um detalhe. Ao perguntar o endereço da clínica em que eu faria as avaliações periciais, descobri que ficava na rua do meu apartamento, do outro lado da rua. Podia enxergar a clínica da minha janela. Fui perito do INSS por três anos e tripliquei a renda que fazia naquela cidade, onde o prefeito me demitiu.
Revelo essas histórias pessoais para ressaltar que entendo a situação das pessoas que sofrem pressões financeiras. Entendo verdadeiramente, porque já estive na mesma situação. A falta de dinheiro é um estopim de doenças mentais, principalmente quando o indivíduo mete-se em dívidas ,contraídas por empréstimos para sustentar o seu padrão de vida já limitado pela sua renda real. Dívidas, impossibilidade de comprar bens de consumo, de prover as necessidades básicas, de manter um estilo de vida mininamente digno, são fatores financeiros que desencadeiam doenças mentais. São estressores sociais e funcionam como gasolina no fogo. Explodem situações mentais patológicas latentes.
Muitos quadros depressivos , ansiosos e surtos maníacos são antecedidos por períodos de estresse intenso, que fazem eclodir condições mentais subjacentes.
No núcleo psicológico de todos nós, o TRABALHO ocupa um espaço privilegiado. Sem trabalho, a autoimagem fica devastada. Sem trabalho, não há renda e sem renda a vida fica restrita, empobrecida materialmente e psicologicamente. Muitos pacientes adoecidos pelo desemprego, pela restrição de renda, buscam na previdência social uma maneira de se sustentar, através do auxílio-doença. E isso não dura para sempre. Muitos recém-formados de diversas áreas estão literalmente desempregados, porque o mercado de trabalho não os absorve adequadamente. Um diploma hoje em dia é apenas um diploma. E atrás dessa carência de espaço para produzir, nascem muitas doenças mentais.
O fator financeiro é um desencadeante de doença mental e também um mantenedor de doença mental. É necessário corrigir esse fator estressante para que a saúde mental seja restabelecida. Tudo custa dinheiro. Então o dinheiro assume um valor simbólico de poder e permissão. As pessoas que fazem dinheiro minimizam esse problema, então ficam liberados de pressões financeiras imediatas. Não significa que estão livres das neuroses, mas uma delas está sob controle.