* Este texto está publicado na Revista CONSULEX do dia 30 /06/11.
Em sua concepção histórica, o termo “sociopatia” passou a ser usado logo depois do clássico A Máscara da Sanidade, publicado, em 1941, pelo Psiquiatra americano Hervey Cleckley. Nesse trabalho pioneiro foi descrita uma condição clínica, a psicopatia, e suas possíveis causas sociais desencadeantes. Ou seja, alguns indivíduos apresentavam comportamentos tão caóticos e dessintonizados com as solicitações da realidade e da sociedade que indicavam alguma doença subjacente. Apesar de capazes de se relacionarem de maneira superficial com as demais pessoas, esses indivíduos eram totalmente irresponsáveis em suas relações e nem sequer tinham consideração pelos sentimentos alheios.
Atualmente, as expressões “psicopatia”, “transtornos de personalidade antissocial” e “transtornos de personalidade” são preferidas ao uso do termo “sociopatia”, por enfatizarem os fatores biológicos e psicológicos causadores desses transtornos, para fins de tratamento individualizado.
Os médicos lidam diretamente com os pacientes, discutindo ou atuando pouco em soluções de aplicabilidade social. Podemos afirmar que tratamos pessoas, com as suas personalidades, vivências e idiossincrasias, recorrendo aos profissionais do Direito e da Filosofia para o entendimento das repercussões dessas patologias individuais na esfera social.
Denominam-se “transtornos de personalidade” os desvios dos padrões comportamentais considerados normais em uma determinada cultura. Esses desvios aparecem em diferentes contextos, sendo estáveis no tempo, resistentes à modificação espontânea ou volitiva, e causam sofrimento significativo para o indivíduo, a sua família e a sociedade.
O “transtorno de personalidade antissocial” caracteriza-se pela violação de direitos alheios, devido à incapacidade de adequação às normas sociais. Ou seja, o indivíduo acometido desse tipo de transtorno tem propensão a enganar, indicada pelo uso de mentiras ou nomes falsos, visando obter vantagens pessoais ou prazer. Há, nessa estrutura psicológica, uma impulsividade recorrente, afigurando-se o fracasso inerente ao planejamento futuro e à antevisão das consequências dos próprios atos. Atos violentos e agressividade geralmente encontram-se presentes, com desrespeito à segurança própria ou alheia, assim como irresponsabilidade consistente em esquivar-se de comportamento laboral adequado e de honrar obrigações financeiras assumidas. Esses indivíduos não sentem remorsos por terem ferido, maltratado ou roubado alguém. O diagnóstico é realizado a partir da idade de 18 anos. Os sinais patológicos surgem antes dos 15 anos e nenhuma outra doença mental caracteriza melhor as manifestações sintomatológicas.
A prevalência do “transtorno de personalidade antissocial” pode ser aferida em 3% a 5% da população, em geral, indivíduos moradores de áreas pobres em grandes centros urbanos, com pouca escolaridade e um severo grau de dependência alcoólica e debilitação. Muitos morrem prematuramente pelo envolvimento com o tráfico de drogas e outras formas de violência. A maioria dos indivíduos antissociais são homens, mas o número de mulheres está aumentando, na medida em que adquirem liberdade social e modificam os seus estilos de vida, assumindo padrões tradicionalmente masculinos.
As expressões “psicopatia” e “transtorno de personalidade antissocial”, apesar de usadas como sinônimos, ostentam diferenças importantes. De fato, a maioria da população carcerária manifesta “transtorno de personalidade antissocial”; apenas 25% preenchem os critérios diagnosticados para “psicopatia”, o que se verifica através da aplicação de um instrumento de avaliação denominado Inventário de Psicopatia de Hare-revisado (PCL-R).
A “psicopatia” inclui itens como irresponsabilidade, impulsividade, falta de objetivos realistas, conduta sexual promíscua, problemas comportamentais precoces, estilo de vida parasitário, insensibilidade e falta de empatia, afeto superficial, ausência de remorso ou culpa, necessidade de estímulos, tendência ao tédio e sentido grandioso de autovalia. Uma pessoa pode ser psicopata e não apresentar personalidade antissocial ou, então, ser portadora de personalidade antissocial e não preencher os critérios para o diagnóstico de psicopatia. A implicação dessas diferenças é que os psicopatas são intratáveis do ponto de vista psiquiátrico até o momento, enquanto os portadores de personalidade antissocial ou comportamentos antissociais isolados são parcialmente tratáveis.
Criminosos de “colarinho branco” são enquadrados, com frequência, como portadores do “transtorno de personalidade narcisista”, uma vez que suas estruturas psicológicas permitiram-lhes tornar-se indivíduos bem-sucedidos, mas defeitos em sua consciência moral acabaram por imprimir-lhes um comportamento antissocial, o que, inclusive, é detectado pela Justiça. Nesta situação, é preciso diferenciar “condutas antissociais” da verdadeira “personalidade antissocial”.
A “conduta antissocial” pode decorrer de pressão dos pares, oportunidades de acesso ao poder, facilidades para levar vantagem em estruturas hierarquizadas, sem fiscalização, conflitos emocionais ou mesmo de pensamento psicótico, isto é, desprovido de avaliações adequadas da realidade, ao passo que a “conduta psicopática” pode ser considerada uma variante primitiva do espectro dos transtornos narcisistas. A personalidade narcisista move-se num continuum, desde a psicopatia evidente, passando por um narcisismo maligno, indo em direção a uma personalidade narcisista com conduta antissocial, chegando a estratos mais tratáveis, como outro transtorno de personalidade com conduta antissocial e alcançando personalidades emocionalmente perturbadas, com padrões antissociais.
Numa sociedade em que o sucesso, o poder, a inteligência, a beleza e o amor ideal são os valores fomentados, as personalidades narcisistas prosperam, com o consequente risco aumentado de se envolverem em condutas antissociais deliberadas ou circunstanciais. O sentimento grandioso que permeia essa personalidade, a autoimportância exagerada, a crença de ser “especial”, a associação com outras pessoas com a mesma constituição psicológica e objetivos, cria um “caldo de cultura” para o aumento da ilicitude encoberta. Como são exploradores por natureza em seus relacionamentos interpessoais, pouco empáticos com os sentimentos alheios e cheios de arrogância e insolência, constituem verdadeiras ameaças à sociedade baseada em direitos e deveres iguais.
A nós, médicos, na área de saúde mental, cabe a árdua tarefa de oferecer recursos de tratamento, na tentativa de resgatar uma consciência que se encontra frágil ou inexistente. Para isso, recomendamos as psicoterapias e os medicamentos. Os resultados terapêuticos são discretos, para não dizermos pífios. A maioria desses pacientes abandona os tratamentos. Não há mudança verdadeira sem a capacidade de sentir culpa e assumir responsabilidades pelos próprios atos – funções da consciência moral. E outros pacientes mantêm o tratamento pelo tempo mínimo suficiente, por serem obrigados pelo sistema judicial, e também para conseguirem enganar a lei e ganhar indultos.
Por fim, os focos atuais de pesquisa estão centrados na prevenção primária. Há uma crescente compreensão de que os genes e o ambiente estão envolvidos na patogênese do transtorno de personalidade antissocial. Intervenções sociais, privilegiando a relação mãe-filho, o controle saudável das relações familiares, a fim de evitar-se a violência infantil, e a promoção de cuidados competentes dos infantes podem influenciar as futuras gerações, reduzindo essa patologia na saúde pública. Quanto aos psicopatas, os estudos se centram na neurobiologia desses indivíduos, com investigações que procuram entender o seu funcionamento cerebral peculiar, para a descoberta de novas intervenções terapêuticas.